Chegou o
tempo de nos revestirmos e nos recobrirmos de cinzas. No imaginário
popular ou científico, cinza é algo desprezível, resto ou resíduo do que
sobrou da combustão. E de fato, é isto mesmo. Como então um símbolo tão
efêmero pode se tornar eloquente no cristianismo? A Bíblia contêm
inúmeras narrativas do uso do pó e da cinza não como cosméticos, mas
como símbolos de arrependimento, conversão, sofrimento e humildade (Gn
18,27; 2Sm 13,19; Est 4,1; Jó 2,8; Dn 9,3; Mt 11,21).
A cinza
possui um significado terapêutico-espiritual muito forte para a
comunidade católica, no início da quaresma: manifesta a busca contínua
da reconstrução da unidade da vida. A ação simbólica (a cruz feita de
cinza na cabeça ou na testa), acompanhada das palavras
explicativas (“Lembra-te que és pó e que ao pó voltarás” ou
“Convertei-vos e crede no Evangelho”) sinaliza a identificação do
cristão a Jesus crucificado, a cruz que deve carregar e o caminho que
terá de percorrer, ao longo da vida, particularmente na quaresma, em
preparação para a Páscoa. São a penitência e a conversão que nos quer
ensinar o gesto da cinza. A cinza então ocupará no rosto o lugar da
máscara, da plástica e da maquiagem do carnaval e das outras marcas do
dia-a-dia da vida. É, portanto, um sinal de Deus que se carrega na nossa
fronte (Ap 7,3; 9,4; 14,1 e 22,4) para sinalizar a mudança de rota e de
vida e recordar a fragilidade da vida humana, sujeita à morte.
Cinza,
na “literatura” cristã, cura, purifica, liberta, salva, redefine o rumo e
a meta da caminhada. Não há obrigatoriedade no uso da cinza. É
opcional. O jejum, no entanto, é obrigatório para quem completou dezoito
anos, até os sessenta anos começados. Mas se um cristão se sentir
movido pelo Senhor a observar esta tradição católica, o importante é que
o se faça sob a ótica bíblica. É bíblico se arrepender de atividades
pecaminosas. É também bíblico o cristão se identificar com Jesus Cristo.
Não é bíblico crer simplesmente que Deus vai automaticamente abençoar
uma pessoa em resposta à observação de um ritual. Deus está interessado
em nossos corações, não em que observemos rituais. Santo Agostinho
resumiu bem este estado de vida: “Procurai o mérito, procurai a causa,
procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a
graça de Deus”.
Em
Nínive, diante da pregação de Jonas, o rei e seus súditos acreditaram,
proclamaram um dia de penitência, se vestiram de saco e sentaram em
cinza (cf. Jn 3,5-6). Estas atitudes e estes ritos supriram efeitos,
foram eficazes, caíram nas graças de Deus, mudaram a vida. O Senhor já
havia prometido isto: “quando eu trancar o céu e faltar chuva, quando
mandar os gafanhotos para devorarem os campos, quando enviar a peste
contra o povo, se então o povo, sobre o qual foi invocado meu nome se
humilhar, orar, me procurar e se converter, de sua má conduta, eu
escutarei do céu, lhe perdoarei o pecado e restituirei a saúde à terra”
(2Cr 7,13-14).
Sem ser
deselegante e inconsequente, sem querer quebrar os protocolos e as
outras convenções sociais, a sociedade brasileira atual, diante de
tantos escândalos e crise de governança, bem que podia adotar este mesmo
ritual: se revestir e se recobrir de cinzas. Deixar de lado a operação
“lava-jato”, para não desperdiçar água, e usar a cinza para a conversão
social.
Portanto,
como um produto que passa pelo fogo, tanto o cristão, como o cidadão,
passam pelas cinzas para a conversão pessoal e social. A cinza é a
argamassa para a construção de um novo edifício espiritual e social.
Deus tem este plano, no recôndito do seu coração, relevado pelo profeta
Isaías: “adorno em vez de cinzas, perfume de festa em vez de luto, ação
de graça em vez de espírito abatido” (Is 61,3). Jesus Cristo veio ao
mundo para realizar este seu plano de amor: curar os corações
despedaçados pelas feridas dos escândalos e das injustiças sociais. Não
importa o cargo que ocupa na escala ou a posição social e religiosa, o
Senhor quer beleza espiritual por meio das cinzas que curam.
No
Brasil, a quaresma está visceralmente associada à Campanha da
Fraternidade. É ela que ilumina de modo particular os gestos
fundamentais desse tempo litúrgico: a oração, o jejum e a caridade.
Neste ano, o tema é: “Fraternidade, Igreja e Sociedade”, e o lema: “Eu
vim para servir” (Cf. Mc 10,45).
* Dom Pedro Brito Guimarães, arcebispo de Palmas (TO) e presidente da Comissão Episcopal para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada da CNBB.
Fonte:www.pom,org
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